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Mulheres ocupam cidades em resposta às violências do espaço público


O Slam das Minas é um movimento para dar protagonismo e substituir o medo pela liberdade de ocupar, com arte, espaços na cidade Imagem: Renata Armelin Marcelle Souza Colaboração para Ecoa, de São Paulo 24/08/2020 04h00

A poeta e produtora cultural Carolina Peixoto tinha só 12 anos quando viveu a sua primeira experiência de violência sexual em São Paulo. "Foi na marginal Pinheiros [na zona sul]. Eu estava indo para uma casa de shows, quando um homem estacionou o carro, saiu e apertou a minha bunda. Ele falou algo e depois foi embora", conta. Neste momento, ela entendeu que o simples fato de ser mulher fazia com que alguns espaços da cidade não fossem permitidos a ela.

"Eu morava perto do local do evento, fui andando porque achei que não tinha problema. Depois disso, nunca mais andei ali sozinha", conta. Junto ao medo, Carolina diz que veio um grande sentimento de culpa, como se ela fosse a responsável pelo aconteceu. "Maluco isso, né? Mas é o que nos ensinam". Vinte anos depois, ela se juntou a outras mulheres no Slam das Minas, um movimento para dar protagonismo e substituir o medo pela liberdade de ocupar, com arte, espaços na cidade.

O cuidado redobrado em lugares públicos é mesmo algo que aprendemos desde pequenas. Em uma rua escura, por exemplo, o temor mais comum entre os homens é o de ser assaltado. Já nós, mulheres, pensamos que o pior seria um estupro.

Mas de que forma o planejamento da cidade reforçaria essas desigualdades e violências? "A cidade é vivenciada de forma distinta por homens e mulheres, é planejada sem levar em consideração as perspectivas de gênero", diz Gabriela Leandro Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA (Universidade Federal da Bahia) "Se a gente pensa que espaços urbanos precários, em termos de cuidado e vegetação, geram uma certa insegurança para homens, isso é pior para as mulheres, que fazem vários deslocamentos por dia, muitas vezes à pé.

Elas são sempre assombradas pela possibilidade de ser perseguidas, encurraladas, agredidas e violentadas". Assim, quando se trata de segurança, por exemplo, a manutenção de espaços públicos, a iluminação e a até a velocidade das vias têm impacto direto na vida das mulheres. "O que é uma avenida 80 km/h? É um muro invisível, porque a pessoa que está dentro do carro não consegue identificar o pedestre que está na calçada. Então o percurso nas áreas próximas a essas avenidas e vias de alta velocidade acaba ficando muito perigoso", explica a arquiteta Luiza Dias.

Ao lado de quatro colegas da Universidade dede Brasília, Luiza fundou em 2014 o Arquitetas Invisíveis, um projeto para discutir o silêncio histórico sobre arquitetas e urbanistas importantes no Brasil. A iniciativa surgiu da pergunta que não parava de incomodar o grupo: "Para quem e por quem as cidades brasileiras são construídas?". "A cidade realmente acaba excluindo a mulher quando tem espaços aglomerados, com muitos becos e muros, o que é extremamente opressor para o pedestre.

Por que quanto mais olhos na rua, mais seguro é aquele espaço. Só que estamos indo para o caminho contrário, os espaços urbanos têm cada vez mais muros e guaritas únicas de acesso. Então ela acaba se fechando para um espaço construído limitado, e a rua fica algo muito perigoso para o feminino, mas também para outros grupos, como idosos e crianças", diz Luiza.

Para além do acesso, mulheres também não se sentem representadas na cidade. São poucos os nomes de ruas, prédios públicos e monumentos dedicados a elas.

Em São Paulo, por exemplo, só 16% dos logradouros têm referência feminina. E você conseguiria citar uma importante arquiteta no Brasil, por exemplo? Dentre elas, há Lina Bo Bardi, responsável pelo projeto do MASP (Museu de Arte de São Paulo, prédio icônico na avenida Paulista, entre outras construções.

Elas se deslocam pela cidade

Em 2017, o Ibope fez uma pesquisa em parceria com a ONU Mulheres em que entrevistou 2.002 pessoas em 143 cidades para saber quais eram as áreas prioritárias para garantir igualdade entre homens e mulheres. O resultado mostrou que são importantes políticas como aumentar a quantidade de vagas nas creches, mais equipes de atendimento especializadas em saúde da mulher e às vítimas da violência de gênero.

Entre as políticas mais citadas, o destaque é para as que envolvem deslocamento nas cidades. Entre as melhorias necessárias para garantir igualdade de gênero, estão melhorar a iluminação, aumentar o número de linhas e itinerários e diminuir o valor do transporte público. Isso porque, além de pensar em gênero, é preciso adotar medidas que atendam as mulheres de acordo com sua idade, raça e classe. "As mulheres se deslocam para mais lugares e de forma mais fragmentada do que os homens. Enquanto eles, em geral, vão de casa para o trabalho, elas vão da casa para a escola do filho, da escola para o mercado, do mercado para o trabalho", explica Gabriela Pereira. "No entanto, a gente tem um transporte público que privilegia o percurso pendular, entre a periferia e o centro, a distribuição de linhas de ônibus está mais pautada em um deslocamento masculino, mesmo que periférico", diz.

O problema não é apenas como a malha é construída, mas também os tipos de violência a que elas são submetidas nesse percurso. Uma pesquisa divulgada em 2019 pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva mostrou que 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte.

O estudo ouviu 1.081 brasileiras que usaram transporte público nos meses anteriores em diversas regiões do país. Nesses espaços, as violências podem ser diversas: olhares insistentes, comentários de cunho sexual, passadas de mão e homens que se esfregam no corpo da mulher aproveitando que o transporte está lotado.

Por conta disso, 46% das entrevistadas não se sentem confiantes no transporte público. "Somos a parcela da população que mais caminha e mais transita na cidade, mas não para desfrute, é para cumprir tarefas e obrigações. E ainda temos mais desafios, como desvios de rota por conta da insegurança, como aquele barzinho que sempre tem alguém disposto a assediar, um túnel que não tem rota de fuga e não permite uma ampla visão do entorno.

Às vezes, temos que optar por descer em uma estação mais distante, para ter certeza que não tem ninguém te perseguindo", diz a arquiteta e urbanista Cora Rocha, do Guia Mulheres na Cidade. Isso explica o porquê 72% das entrevistadas dizem que o tempo de locomoção entre a casa e o trabalho influencia na decisão de aceitar um emprego ou permanecer nele. "Se a gente pensa nas mulheres trans e travestis, a rua é ainda mais um lugar de violência, de ser agredida, pelo simples fato de expor seu corpo na rua", diz a professora da UFBA.

Em setembro de 2018, a lei de importunação sexual tornou crime assediar uma mulher no transporte público. Só no primeiro ano da norma, o estado de São Paulo registrou 3.090 casos desse tipo. Deste número, 31% ocorreram em vias públicas, 26% em residência e 12% no transporte público. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Ocupar a cidade Mas a cidade é também movimento, disputa, e vários grupos de mulheres têm atuado, em distintas esferas, para tentar ocupar e mudar a relação com ela. E para além de mostrar a violência de gênero e criar formas de combatê-las, outras iniciativas tentam dar visibilidade a espaços de cultura, esporte e empoderamento nas cidades.

Foi com esse objetivo que o coletivo Formiga-me lançou um financiamento coletivo para produzir o Guia Mulheres na Cidade. "Nós, mulheres, transitamos mais pela cidade, usamos mais o transporte público e a mobilidade a pé. Nossos corpos são considerados objetos e são constantemente violados, o que nos coloca em situação de constante tensão e medo.

Por isso é tão importante ter uma rede de apoio, conexão e troca entre mulheres", afirma Cora Rocha, arquiteta integrante do Formiga-me e do Guia Mulheres na Cidade. O objetivo é divulgar, ampliar e consolidar essa rede de trocas em São Paulo.

O objetivo é divulgar, ampliar e consolidar essa rede de trocas em São Paulo. A prioridade é mostrar são iniciativas sociais de caráter local, serviços públicos e pequenos negócios com fins lucrativos, especialmente fora do centro.

Entre as primeiras iniciativas mapeadas estão, por exemplo, a Biblioteca Feminista Cora Coralina, na zona leste, e a Casa Angela, um centro de atendimento para parto humanizado na zona Sul. "Descobrir e revelar esses espaços é uma forma de contribuir para uma cidade mais justa e com mais equidade de gênero.

E, para a gente, equidade de gênero significa oportunidades e direitos iguais para todas as pessoas", afirma Fernanda Carpegiani, comunicadora e uma das criadoras do guia. "Seja para cuidar da saúde, dançar, conversar ou aprender uma habilidade, encontros femininos nos ajudam a perceber que não estamos sozinhas, e que juntas somos mais fortes", diz. Em geral, esse tipo de projeto é uma resposta à invisibilidade das mulheres em grupos mistos e à dificuldade de pautar suas experiências em público.

Foi assim que surgiu o Slam das Minas, uma batalha de versos organizada e protagonizada por mulheres em vários lugares do Brasil, como São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Brasília. "No início, tínhamos uma pretensão muito pequena, que era garantir uma vaga feminina no Campeonato Nacional de Poesia.

"No início, tínhamos uma pretensão muito pequena, que era garantir uma vaga feminina no Campeonato Nacional de Poesia. A gente entendia o quanto era desigual essa competição para nós, porque faltava protagonismo para as mulheres nos espaços mistos", diz Carolina Peixoto, poeta que conta a sua história no início desta reportagem e integrante do Slam das Minas em São Paulo. A poeta Kimani durante Slam das Minas em São Paulo

O objetivo inicial se concretizou: em 2020, a poeta Kimani, atual campeã do Slam Nacional e moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, representou o Brasil na Copa do Mundo de Slam, realizada na França. Mas esse não é o único resultado.

Além de permitir a participação de outras minorias, como mulheres e homens trans, o Slam das Minas em São Paulo possibilitou a formação de uma rede de artistas e produtoras culturais. "Criamos um espaço de acolhimento, de parceria, onde a gente pode chegar e falar sobre o que quiser, não só de violência, de opressão e racismo.

É possível falar de amor, de amor entre mulheres, de amar o seu cachorro. Porque tem horas que a gente não quer gritar, a gente só quer falar das flores, sabe? E o Slam das Minas tem também esse lugar", diz Carolina.

Sua própria companhia

Se em grupo as mulheres têm criado espaços de fortalecimento, cuidado e diversão, Juli Batah decidiu encarar sozinha a cidade de São Paulo e publicar suas experiências no perfil Mapa das Minas, no Instagram. "Nunca tive problemas em estar só, via pessoas jantando sozinhas em restaurantes e achava aquilo super poderoso, glamouroso.

Costumava admirar essa atitude de longe, mas só quando comecei a viver essa experiência é que vi o quão libertador era não precisar dividir a mesa com pessoas que não me acrescentavam, não ter que insistir pra alguém ver um show de alguma banda que só eu conheço comigo, poder escolher sozinha que filme ver, o que iria jantar, ficar fora de casa até a hora que eu quisesse", conta.

Tudo começou quando as amigas se casaram, mudaram ou simplesmente se afastaram. Foi aí que ela decidiu fazer tudo que sempre quis, mesmo que ninguém quisesse acompanhá-la. E descobriu que era a sua melhor companhia e acabou incentivando outras a fazerem o mesmo. "Comecei o Mapa das Minas com a ideia de fazer mais passeios pela cidade e escrever sobre eles. Até que postei sobre um show em que fui sozinha e comecei a receber muitas mensagens de seguidoras perguntando como eu tinha tanta coragem para fazer aquilo".

As principais questões eram como encarar os olhares de reprovação, os episódios de assédio e, principalmente, como se manter segura. "Estar com a visão atenta e o 'faro' bem apurado nos protege. Parece perigoso? A sensação é esquisita? Então, entre em algum estabelecimento aberto, espere um pouco ou vá embora imediatamente. Use aplicativos de carona para ir até o metrô ao invés de ir a pé, se não se sente segura. Peça ajuda para outras mulheres que estão por perto", recomenda.

Juli diz que, além de mais seguranças nas ruas, os estabelecimentos precisam entender que não há nenhum problema que uma mulher se sente sozinha para jantar ou tomar um drink. "Na maioria das vezes que peço 'mesa para um', os funcionários reagem de forma incrédula, sem contar os casos de machismo e assédio. A gente quer se sentir bem-vindas, poder estar sozinhas e desfrutar desse momento da melhor forma". A ideia é fazer com que, sozinhas ou acompanhadas, mais mulheres ocupem espaços e aproveitem melhor o que a sua cidade tem a oferecer. "Uma mulher só é livre quando todas são, por isso essa ideia de conquistarmos juntas o nosso espaço de amor e trocas".

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